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Obra Vestibular da UNICENTRO: Jangada de Pedra- José Saramago

          

Obra publicada em 1986, José Saramago  narra uma série de acontecimentos fantásticos que trata da separação da Península Ibérica que navega à deriva no Atlântico, indo inicialmente em direção aos Açores.

Dividida em 23 capítulos, a obra preserva o português lusitano  destacando-se expressões populares típicas de Portugal. O autor se utiliza de períodos e parágrafos muito. Há uma total  eliminação dos sinais de pontuação (usando predominantemente a vírgula e o ponto).

O romance se inicia com a narração de alguns casos insólitos: Joana Carda e a vara de negrilho, Joaquim Sassa e o arremesso de uma pedra ao mar, José Anaiço e os estorninhos, Pedro Orce e o tremor da terra e Maria Guavaira e o fio de lã, onde são interligados mais adiante na narrativa. O elemento desencadeador da história está centrado na ação desses cinco personagens que se encontram em locais diferentes, quatro em Portugal e um na Espanha: Em Portugal, com Joana Carda riscando o chão com uma vara de negrilho, Joaquim Sassa atirando uma pesada pedra ao mar, José Anaiço passando a ser acompanhado por um gigantesco bando de pássaros, Maria Guavaira começando a desfazer um pé de meia e, finalmente, na Espanha, Pedro Orce batendo os pés no chão. A junção desses acontecimentos, curiosa e inexplicavelmente, dá início ao rompimento geológico dos Pirineus, fazendo com que Portugal e Espanha se desliguem totalmente da Europa e passem, tal qual uma descomunal jangada de pedra, a navegar pelo oceano afora, rumo a um novo destino.

O cão Ardent é também uma das personagens que vai compor a caravana composta pelas cinco personagens, uma vez que também sentiu o estalar da pedra. Os cinco personagens principais vão se encontrando aos poucos, primeiro Joaquim Sassa com José Anaiço, em seguida os dois encontram-se com o espanhol Pedro Orce. Aos três, junta-se Joana Carda, a qual une-se amorosamente a José Anaiço. Depois desses encontros, é a vez do cão Ardent aparecer, com um fio de lã azul constantemente à boca, e os conduzir até Maria Guavaira, que enamora-se por Pedro Sassa. Dessa forma, os seis iniciam uma viagem pelo interior da Península Ibérica a qual os levará à descobertas de novos horizontes, tanto pessoal quanto coletivamente.
O tempo da narrativa é psicológico. Embora haja referências cronológicas, elas não predominam, além de serem em grande parte imprecisas.
José Saramago sempre foi um escritor consciente da realidade social do seu país e da sua gente, toda sua obra está marcada pela crítica à realidade nacional de um povo empobrecido e atrasado socialmente. Saramago parece acreditar, e isso pode ser comprovado em suas inúmeras entrevistas e debates no qual participou, que Portugal e Espanha fazem parte de uma outra face da Europa, menos valorizada. Daí a separação dos dois países.


A própria metáfora “Jangada de Pedra” remete a dois modelos de existência: um deles associado ao movimento, dinamismo, típico da jangada como meio de travessias marítima e o outro o da pedra como elemento estático, parado, que não vai para frente, por estar preso ao chão. A dinâmica do movimento está ligada à ruptura da península com a Europa, a partir de processos surpreendentemente inexplicáveis, como riscar o chão com uma vara, atirar uma pedra ao mar, pisar no chão etc.

 

O espaço é a Península Ibérica vagando pelo Oceano Atlântico.

 

PERSONAGENS PRINCIPAIS


Logo no início do romance, o narrador destaca estrategicamente as cinco personagens mais o cão que as guiará e os acontecimentos sobrenaturais relacionados a cada uma, e anuncia a ruptura da Península, a qual todos estão ligados. A narrativa é tomada por um clima de incertezas e pressentimentos apocalípticos.



Joana Carda - Portuguesa divorciada que mora na região de Ereira.

Joaquim Sassa - Português (Porto), trabalha em um escritório, estando de férias por uma praia ao norte de Portugal.



José Anaiço - Português (Ribatejo) com o ofício de professor que fica sendo acompanhado constantemente por uma nuvem de estorninho.



Pedro Orce - Próximo dos sessenta anos, espanhol da região de Orce, farmacêutico no vilarejo de Venta Micena.



Maria Guavaira - Habitante da região rural da Galiza, puxa um fio azul de lã de uma meia que se multiplica exageradamente em comprimento.

COMENTÁRIOS GERAIS


Em A jangada de pedra, o autor exclui literalmente a Península Ibérica da Europa valendo-se do discurso irônico e do realista mágico, mas não com o objetivo de dessacralizar a história oficial, como fez em Memorial do convento, mas para questionar sobre o porvir, dialogando com antecedentes históricos, expressos na intertextualidade, por exemplo, com Camões, e sugerindo uma solução para o futuro, que se realiza na configuração mítica de um novo mundo.



Traz uma crítica afiada e agressiva a todo este contexto, na obra o autor apela para uma faceta onde se identifica um traço que chega a partir para o lado surreal da literatura: a divisão da Península Ibérica do restante da Europa, onde Portugal e Espanha desprendem-se do continente e começam a “navegar” pelos oceanos de forma aparentemente errante.



A rigor vemos que não é só Portugal que adota esta postura de “separação”. A Espanha também passa por uma situação similar no continente Europeu, tendo sido considerado um país hoje periférico e sendo ontem também dona de um império colonizador e hoje sofrendo os mesmos dramas portugueses.



A separação se dá através de um ato banal, uma personagem ao traçar uma linha no chão com uma vara de madeira cria assim uma analogia com uma fronteira imaginária no mapa, considerado mutante da Europa e a partir desta fenda ocorre a separação da península. O primeiro passo deste estudo é identificar porque a Espanha é incluída na separação.

Não basta justificar a inclusão apenas pela similaridade das situações históricas e políticas, mas há uma forte identificação entre as culturas de ambos, sendo assim explícita quando o ponto de interseção entre os dois países são as línguas, ambas provenientes do Latim e com traços fonéticos de alta similaridade, sendo a língua espanhola e a língua portuguesa compreensíveis até determinado ponto entre os dois povos, trazendo uma espécie de “irmandade”. Outro ponto interessante é que após a separação a idéia de país torna-se menor em relação à idéia de península, pondo os espanhóis e os portugueses como habitantes de um lugar comum, verdadeiros conterrâneos passando pelas mesmas dificuldades e conflitos.

O desprender da Península do continente europeu mostra uma espécie de recomeço na vida dos iberianos (nomenclatura adotada neste estudo para se identificar os espanhóis e portugueses) que, repetindo a história voltam a se lançarem ao mar, mesmo que de uma forma inusitada a península assume o papel das naus que no passado trouxeram o esplendor do império aos países em questão, mostrando uma esperança em relação ao retorno dos tempos de glória da idade moderna. No seguinte trecho podemos observar a identificação cultural e histórica entre os dois países:

“É que, concluamos o que suspenso ficou, por um grande esforço de transformar pela palavra o que talvez só possa pela palavra possa a vir ser transformado, chegou o momento de dizer, agora chegou, que a Península Ibérica se afastou de repente, toda por inteiro e por igual, dez súbitos metros, quem me acreditará, abriram-se os Pireneus de cima a baixo como se um machado invisível tivesse descido das alturas, introduzindo-se nas fendas profundas, rachando pedra e terra até o mar, agora sim, poderemos ver o Irati caindo, mil metros, com o infinito, em queda livre, abre-se ao vento e ao sol, leque de cristal ou cauda de ave-do-paraíso, é o primeiro arco-íris suspenso pelo abismo, a primeira vertigem do gavião que com as asas molhadas paira, tingidas de sete cores.



Nesta passagem, construída com muitos elementos simbólicos, fica claro o início da jornada da “Jangada” constituída pelos dois povos pelo mar. Jornada esta com um início mítico, passando pelo portal de arco-íris em direção ao sol (símbolo máximo da esperança) relembrando a tradição mítica da fundação de Portugal. Também nesta passagem abrir-se ao vento e ao sol tem um significado implícito de retornar as origens da formação da cultura lusa e de buscar novas terras como a tradição colonizatória do país, possuindo uma face heróica trazida da tradição camoniana épica e também uma forma de “deixar para trás” um continente viciado e recomeçar a pátria como um dia fez Vasco da Gama. Um questionamento tipicamente modernista como uma forma de se chegar às raízes das conquistas dos impérios e fortificação das monarquias nacionais com o fim de reaver a posição portuguesa no patamar mundial.

Toda obra remete-se às várias fases da literatura portuguesa, fases estas que se percebe o heroísmo e estoicismo do homem português exaltados. A tradição camoniana é uma das maiores inspiradoras do texto, trazendo assim um texto com forte apelo dramático e épico, com um aflorado teor epopéico escrito em prosa onde os personagens neste caso assumem um papel secundário sendo assim o “pano de fundo” do texto (a Península) o verdadeiro personagem principal.



A renovação dos países de línguas originárias do Latim remete-nos ao também passado de glórias do Império Romano. A história portuguesa e espanhola traz desde suas formações políticas esta relação com o imperialismo e a dominação. A Península assume o papel de um novo país/ império em busca de seu lugar. O vagar da península pelo oceano também traz dentro de si uma analogia com o expansionismo do latim e, no caso mais em primeiro plano de Portugal o retorno da navegação no sentido da descoberta do novo mundo.


Com o desenvolver do texto a idéia de país chega a se tornar completamente abafada em relação à idéia de Península (comunidade), posta como um novo lar deste novo povo que surge com a separação desta da Europa, o maior problema filosófico do pensamento literário moderno está explícito na seguinte passagem:


“O tempo é de férias, pode ir e voltar sem ter de pedir licença, agora nem o passaporte exigem na fronteira, mostra-se simplesmente o bilhete de identidade e é nossa a península.”

Na simples passagem acima nota-se que volta a haver uma relação afetiva entre o homem e sua terra natal. Agora causando furor mundial o fato da separação da Europa (e de uma certa forma também do resto do mundo) o homem ibérico volta a mostrar um certo orgulho de mostrar em sua documentação a sua nacionalidade, agora voltando a ser motivo de patriotismo e nacionalismo como antes fora, o projeto da revitalização da história e de retornar ao cume do mundo começa a se esboçar lentamente através deste pequeno ato de soberania: um cidadão respeitado pela sua nacionalidade, algo que o português sente falta e é preenchido no texto.

A nova nação ibérica é uma visão revolucionária dentro do contexto “velho mundo”. Uma forma de trazer para si esta superioridade é justamente na colonização cultural, onde uma forma de fazer com que este se realize é trazendo adeptos para esta nova nação. A exemplo do atual cenário mundial onde o visto permanente nos Estados Unidos é cobiçado (o Greencard) trazendo para o imigrante a possibilidade de uma dupla nacionalidade. A Península também traz para si seus imigrantes, não de uma forma propriamente dita, mas sim um novo pensamento de aproximação com este novo país.

“Os países da Europa, onde felizmente se tem verificado um certo abaixamento de tom na linguagem quando se referem a Portugal e Espanha, depois de séria crise de identidade com qual se debateram quando milhões de europeus resolveram declarar-se ibéricos (...) Quanto aos Estados Unidos da América do Norte, que assim por extensão inteira deverão ser sempre nomeados, apesar de terem mandado dizer que a fórmula de governo de salvação nacional não é do seu agrado, mas que enfim vá lá, atendo a circunstância, declaram-se dispostos a evacuar toda a população de Açores (...) ficando todavia para resolver mais tarde onde poderão ser instaladas estas pessoas, nos próprios Estados salvadores (...) e esse é o sonho secreto do Departamento de Estado do Pentágono, seria que as ilhas detivessem, mesmo que com alguns estragos, a península que assim ficaria fixada no meio do Atlântico para benefício da paz do mundo, da civilização ocidental e de óbvias conveniências estratégicas”.

O rico trecho acima mostra a aproximação dos Estados Unidos a Península. Visivelmente disposto a selar um acordo com o país que se aproxima denota-se um aumento na importância dos países em relação ao globo. Tanto mostrados na passagem dos possíveis acordo entre estados (já existe um reconhecimento desta natureza– estado independente- para a Península) até com o simples abaixamento no tom de voz dos outros povos, sinal de respeito e aceitação.



A relação com os Estados Unidos, a grande nação imperialista do mundo atual, funciona como uma espécie de acordo entre impérios, onde os EUA aceitam a anexação da península em seu território trazendo na justificativa uma pesada carga de ironia satirizando o estereótipo em relação ao pensamento do homem estadunidense, uma forma de manter a paz no mundo e em toda civilização ocidental (pretexto dos últimos acontecimentos no Iraque) e, usando o arquipélago de Cuba pra frear o avanço da península, usando um eufemismo “mesmo que com alguns estragos” para se referir a destruição do país, que, nesta visão satírica de imperialismo não passará de alguns estragos, tudo facilmente reparável e sem grande importância. Clara crítica ao pensamento considerado hermenêutico.



Nisto a longa viagem da península tem seu fim quando ao descer em direção das Américas a Península “ancora”, dando ao entendimento do leitor ter se estabilizado na costa do Novo Mundo, podendo até se especular (devido a sua vasta extensão costeira) que a Península teria se fixado na costa brasileira. Fato este que traria a Península a uma nova terra em desenvolvimento, com uma cultura mais aberta em relação ao purismo dos países europeus e com povos nascidos da miscigenação da colonização (e, diga-se de passagem, falantes das línguas portuguesa e espanhola) como uma forma de trazer à luz do homem português a ciência de que a língua, como um produto vivo do dinamismo cultural muda e sofre passa por mutações, não podendo ser amarrada em regras e preconceitos dogmáticos que tanto geram conflitos às mentes presas ao imperialismo medieval.



Assim a narrativa descreve o caos estabelecido na Península a partir do desgarramento, desde os problemas políticos, falta de alimentos, apagões até as alterações ecológicas. Trata-se de um prenúncio apocalíptico, dimensionado pelo descaso dos países europeus e pelos movimentos marítimos da “jangada”. O realismo mágico instaura-se já no primeiro capítulo, quando o narrador, instância importante na realização da categoria, antecipa de forma magistral os acontecimentos mágicos que vão se intensificar no decorrer de um enredo nada linear.



 

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